terça-feira, 17 de agosto de 2010

Cinco poemas de César Azevedo

Enoitecidos

Fechou a sacada
E me vestiu de rua

Do lado de dentro
não havia mais lua

Do lado de fora
não havia mais nada


Reciclo

Nasceu
Quis luz
Palavra
Sentido

Do tapa
Um choro
Do lado
Pai-mãe

Cresceu
Quis voz
Resposta
Sucesso

Do nada
Um grito
Do lado
Pai-mãe

Morreu
Quis paz
Silêncio
Perdão

Do sim
Um riso
Do lado
Pai-mãe


Vindita

Um silêncio venenoso
Revolve memórias secas
Onde outrora levitei
Perdido prazer ditoso

No solitário repouso
A vida não manda aviso
Decreta o fatal destino
Do injusto abandono

A sombra percorre o corpo
Fere e foge sem pegadas
Rejeito o sabor amargo
Semente do vão desforço

De improvável sopro súbito
Deixo o largo estado imóvel
Levanto descalço e óbvio
Farejo o teu rastro dúbio

Em nós de vento insensato
Um cais de porto inseguro
Nas docas a ti procuro
Outra qualquer não me basta

Fico à margem esgueirado
Ao ver-te acelero o pulso
Co’a letal adaga em punho
Deito à relva o meu fracasso


Vide verso

Escrevo sem ter porquês
Esse poema benfazejo
Se é tanto o que eu te vejo
E tão nada tu me vês

Abraçado com tais linhas
Sigo a vida na tua ausência
Se morrer de antecedência
Nem saberás que são minhas

Envio-te em forma de carta
Posto dizer não consigo
Queria ser mais que amigo
Amante de cama farta

Não me contentar em ver-te
No acaso de dias escassos
E na sombra dos teus passos
Espreitar chance do flerte

Se é tão nada que me vês
Sabe o quanto eu te vejo
Nesse poema benfazejo
Que escrevo sem ter porquês


Horas de navalha

O homem larga a navalha
De espuma e sangue e barba
Pedaços da própria sorte
Vertem a primeira hora

Vago de incertezas tantas
Enche o frágil pensamento
De ilusão e esperanças
Reveste a pele por dentro

Qual é mais intolerante?
Rua, metrô, livro-ponto
Ou a promessa de infante
que vira deveras sonho?

Nas mesas dos escritórios
Fantasmas cegos e mudos
Batem carimbos inúteis
Desatam tolos imbróglios

Chegado o fim da jornada
Despe o uniforme puído
Veste de volta o menino
E enfim descobre que é nada

O homem pega a navalha
Abre a pele e o pulso rasga
Pedaços da própria sorte
Vertem à última hora

5 comentários:

  1. Querido César, estou feliz. Quanta evolução houve na tua poesia. Precisão, conteúdo e entrega. Parabéns.

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  2. César!!!
    Que fantásticos poemas, que doçura!
    Ao mesmo tempo, a força que move - mas do que o sentimento - a Palavra, maior que tudo.

    Beijo

    Cecilia

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  3. Oi César, não foi por pouco que o Kiefer te escolheu. Vendo nós tres assim, juntos, me deu uma saudade enorme do Paulo e suas catedrais. Continuo com ciúmes da tua musa anônima. Um beijo, ana

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  4. Obrigado pelas palavras gentis. A musa é imaginária (vamos deixar assim dito). Um dia me disseram que poeta é fingidor. Então, sigo tentando me embaralhar entre os versos. Que bom se um dia voltássemos com o quinteto.
    Abraços,
    César

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  5. adorei entoitecidos...já postei no meu blog também.

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