sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Três poemas (Charles Kiefer)

Eu canto


Eu canto o que vi, um dia, fenecer
nesse desfazer-se implacável
que é a vida, o amor, a fome
de outro ser, que se esboroa,
esperança que se esvai em agonia

Eu canto o que vi, e o que passou,
e o que senti, vivi, e o que amei,
que sobra de tudo só o canto triste
de um passado já morto, e que morre
a todo o instante, a desfazer atroz
e inclementemente a vida e o ser.


Amor

Sobre o amor não sei falar.
Ou sei, mas é de outro amor,
mais vasto que este, agregado

à pele, aos ossos, ao corpo.
Sei falar do amor que é negra luz
e fria luz, o centro mesmo do ser

e que irradia a outra luz, a branca
luz, a luz da lógica razão,
e que anuncia a possibilidade

de ultrapassar-se o esperma,
o gozo, o espanto, a noite fria.
E é música sem som, palavra

oca, mas que toca a foca,
a cotovia, o céu da boca e, lá no
alto, o céu da estrela-guia.

Eu o pressinto no olhar de um cão,
num peixe morto sobre a mesa,
num corpo exausto no leito,

ausente e absinto, presente
e vinho, azeite e pão.
Deste amor eu sei falar.


Não me fales de amor

Não me fales de amor, essa ilusão
de tolos incientes que desconhecem
o poder da carne e que à luxúria

creditar precisam guirlandas de flores
e véus esbranquiçados. Não sabem,
estes tolos, que o amor acaba como

o lenho lambido pela chama, e não há
maneira de sustentá-lo aceso?
A carne não, a carne é bem mais forte

e resiste intacta por diversos anos.
Depois, adiante, a carne, sim, fenece,
mas antes, antes há de ser prece

no altar do gozo, e goza o amante
o puro instante, enquanto não chega
a hora vil do abate.

Não me fales de amor, essa tolice
de adolescente, que a confundir
desejo e ágape, se perde em círculos

de cão a mordiscar a própria cauda,
a confundir no espelho de outra
face a própria face imberbe.

O amor não desce à alma, só flutua
na terrível derrisão e movimento
incessante do rio do ser em eterno

movimento; o amor não tece futuro
nem esperança e não sabe construir
pontes entre dois seres diferentes;

o amor não basta nem a si mesmo
e não padece às conjuras dos velhos
feiticeiros; o amor verdadeiro é só

o do erasta, que ama no amante
tão somente o corpo desvalido.
Não me fales de amor, esse balido.

5 comentários:

  1. Oi Charles, fiquei muito comovida com os teus poemas acima.Tanto pela temática, como pela humanidade e beleza, pela técnica e riqueza de cada palavra posta. Me encantou tanto quanto os poemas de Ana Mariana, a qual tenho o prazer de dirigir o sarau sobre seu livro "Olhos de Cadela".

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  2. As palavras escolhidas com requinte e precisão.Colocadas cadenciadas formando música suave aos ouvidos.Embalam sonhos.Brotam fantasias. Faz sangrar as cicatrizes da alma. Transforma a beleza do sofrer...

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  3. Tua poesia me fez lembrar Joâo Cabral de Melo Neto, poema feito de palavra-pedra, pedra lapidada, grãos de feijão catados, bem escolhidos. Uma palavra que escava por dentro, ampliando o sentido do amor. Gostei muito. Bjo. Cátia Simon

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  4. oi!
    Adorei o "Não Me fales de Amor". Lido em voz alta, é música!
    Lilian Velleda Soares

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  5. coitado do João Cabral de Melo Neto

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