quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Ser Humano (Augusto Britto)

(após rodar pela terceira vez no teste da auto-escola de direção)



Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Tabacaria – Álvaro de Campos



Eu, que tantas vezes ri da Humanidade,

Eu, a quem o mundo sempre foi – como certeza – ridículo,

Eu, que sempre soube – como ninguém – a mediocridade desses seres sociais,

Percebo agora, caminhando à noite como qualquer outro, como só mais um em um  

[infinito de inutilidades,

com as mãos no bolso,

com o olhar triste querendo se esconder na calçada,

que não passo de um ser humano,

patético, risível e inútil.



Quantas vezes gritei, ridículo!, ao homem chorando por não ter conquistado o

[mundo

Quantas vezes gritei, imbecil!, ao homem que não conquistou um desejo

Quantas vezes gritei, meu deus, quantas vezes gritei, inútil!, àquele que tanto queria qualquer coisa, por mais fútil que fosse, e não conseguiu.

Quantas vezes achei que a vida era simples, que a vida era treinar e ganhar, sem saber que poucos vencem, e que há sempre um perdedor.

Quantas vezes me achei um grande homem, conquistando tudo que sempre quis,

para agora perceber com náusea que não passei sempre de um débil

que sempre fugiu para o que era mais fácil

e que nunca ganhou senão em sonhos as batalhas inexistentes.



Como em uma tomada de consciência me impressiono com minhas vitórias invisíveis.

Me dou conta de que o sonho não é realidade

e perco por nocaute

do não que meus sonhos nunca me deram.



Eu, que vivi de rir de quem falha, vejo que fugi do mundo inteiro com medo de                                                                                           

                                                    [risadas.

Eu, que ri alto e confiante para mostrar minha confiança,

sofro com o medo do deboche que eu sei que virá.



Caminho sem rumo, porque sei que a essa hora não encontro ninguém que possa

[rir de mim na rua,

e chuto um mendigo deitado para provar minha superioridade.

Caminho sem rumo, e para sempre caminharei para longe do que me abala e do                   

[que me faz ver o que sou.

Não vejo motivos para voltar

e invento que a vida é uma inutilidade sem fim;

e essa noção me consola e me conforta.

Não vejo motivos para voltar

e se a vida é de fato uma inutilidade sem fim

sinto medo de que eu, inútil, só tenho uma opção: a de dormir e morrer para fugir

[dessa dor.

Mas eu, inútil, não sirvo nem para não sentir dor.



Caminho porque não posso dirigir.

Sei dirigir, sei controlar uma máquina melhor que a mim mesmo

 – e por isso me seguro à máquina, como que querendo fugir de mim mesmo.

Por não conseguir me controlar,

ao ter de mostrar o que sei,

quando vou pegar a autorização de ter um papel – um simples papel! – que me

[permita fazer o que já sei,

quando eu vou mostrar aos outros o quão bom eu sou

eu falho,

eu, humano, risível, patético, inútil

humano

falho.



E eu, que tenho a vida inteira dirigido e me preparado,

que enquanto fui impedido por lei de tirar a carteira de motorista ri

[de quem podia ter permissão e não conseguia algo tão simples

– a vida é tão simples!,

por três vezes já não consigo,

e continuarei não conseguindo

– a vida agora me soa impossível, como soam impossíveis meus sonhos tão reais:

tudo cai e tudo é nada.



Eu, que sempre me considerei um ser de outro planeta,

perfeito, intocável,

agora levo um peteleco de qualquer transeunte

e caio, rendido a tudo, no chão.

Caio mais humano que toda a Humanidade junta, e me dói o deboche.

Forço lágrimas que não existem e não consigo fugir desse sofrer

– logo a fuga, que sempre foi meu ponto forte.

Eu, que sempre achei a vida simples e ri de quem dela tivesse medo

tenho agora mais que medo

do que me resta: dormir e morrer.



Achei que um dia eu pudesse salvar toda a Humanidade da humanidade mesquinha e medíocre desses seres

desses seres

e agora percebo ser um deles:

o mais reles.

Hoje, penso na possibilidade de voltar para casa e me contentar em ser ninguém, menos que um coadjuvante, menos que um nome, menos que humano para o resto

[da vida

me contentar com o nada

e percebo que essa opção já é obtusa,

dando-me conta de que me perdi na noite escura

cheia de caminhos tortos

como torto é meu coração.



Eu, que sempre ri de quem falava em coração,

ouço agora o meu bater

– e é um bater triste e inexorável.



Eu, que dei a fórmula da vida dizendo: luta! para quem estava decepcionado,

me odeio e não quero – nem consigo –

lutar.



Sinto uma impotência de quem nunca vai conseguir um papel meramente simbólico

que em outros tempos me faria dizer: que vá para o inferno essa merda de papel!

Hoje, esse papel é minha vida,

e sinto que jamais vencerei.



Mais dias, semanas, meses se passarão

e eu talvez não consiga nunca.

Talvez eu seja sempre aquele caso bizarro de quem tinha tudo para conquistar,

mas não conquistou não se sabe por quê.

De quem evita-se falar, e, quando comentado,

é com pena.

Agora fico feliz se alguém, ao invés de rir,

tem pena de mim.

Já não consigo sorrir,

minha máscara caiu para mim mesmo.

Preciso de conforto, mas nessa noite escura nem a lua me conforta.

E nunca houve quem me confortasse porque nunca julguei preciso conforto.



Entro em um bar decidido a ignorar o mundo.

Todos estão felizes, e eu sou invisível, apenas uma falha nisso tudo.

Sento em uma mesa e minha companhia agora é uma garrafa – e ela me ampara.

Me imagino de longe, vendo essa cena ridícula;

um homem sozinho, sofrendo de solidão sem nem ao menos ter

a ausência de alguém para lamentar – porque não há ninguém.

Pagando pela companhia de um líquido.



Me dou conta de que a risada foi sempre uma fuga de mim mesmo,

uma maneira de encobrir meus medos.

Medo.

Agora eu, humanamente, sinto medo,

de não conseguir realizar nada,

de passar a vida inteira sendo um inútil impotente – muito mais do que todos

[aqueles de quem ri, que, embora falhassem, também acertavam.

Medo de ser aquele de quem todos debocham e comentam:

aquele ridículo!

Medo de não conseguir ser mais que um ridículo.

De, na hora de ser avaliado,

falhar,

como tenho sempre falhado na vida.



Falhei! Meu deus! Falhei

ridiculamente

e escrevo esses versos ridículos que não me consolam nem me animam

e não me levam a lugar nenhum.

Fujo da vida lendo, e da frustração escrevendo.

E fujo de mim mesmo rindo dos outros que sofrem por eu mesmo ter tanto medo

[de sofrer.



O efeito da minha companhia começa a ser notado

e eu balbucio versos inúteis para uma gorda ao meu lado,

tão pouco interessada no meu patético charme,

no meu sorriso que transpira medo de receber um não

– e não só um não: um não de uma gorda horrorosa.

Levo um tapa na cara com a força de uma vida inteira

e ele me dói como se fizesse alguma diferença.

Agora meu inimigo é aquela gorda nojenta, mais bonita e muito mais feliz que eu.

Tento agredi-la e caio – ridículo – no chão.



O deboche veio da eterna debochada.



Me levanto cambaleante e tenho vergonha de tentar de novo

– a nova tentativa será frustrada, eu sei, e me contento com meu vexame.

Tenho vergonha de tentar de novo, e por isso saio

caminhando

– para sempre caminhando.



Por essa noite escura e esses caminhos tortos

não sei se algum dia encontrarei conforto.

Espero que o sol nasça logo, mas não sei por quê.

Não sei de mais nada.

Sei somente que volto para casa

e que sou humano

risivelmente

humano.