Enoitecidos
Fechou a sacada
E me vestiu de rua
Do lado de dentro
não havia mais lua
Do lado de fora
não havia mais nada
Reciclo
Nasceu
Quis luz
Palavra
Sentido
Do tapa
Um choro
Do lado
Pai-mãe
Cresceu
Quis voz
Resposta
Sucesso
Do nada
Um grito
Do lado
Pai-mãe
Morreu
Quis paz
Silêncio
Perdão
Do sim
Um riso
Do lado
Pai-mãe
Vindita
Um silêncio venenoso
Revolve memórias secas
Onde outrora levitei
Perdido prazer ditoso
No solitário repouso
A vida não manda aviso
Decreta o fatal destino
Do injusto abandono
A sombra percorre o corpo
Fere e foge sem pegadas
Rejeito o sabor amargo
Semente do vão desforço
De improvável sopro súbito
Deixo o largo estado imóvel
Levanto descalço e óbvio
Farejo o teu rastro dúbio
Em nós de vento insensato
Um cais de porto inseguro
Nas docas a ti procuro
Outra qualquer não me basta
Fico à margem esgueirado
Ao ver-te acelero o pulso
Co’a letal adaga em punho
Deito à relva o meu fracasso
Vide verso
Escrevo sem ter porquês
Esse poema benfazejo
Se é tanto o que eu te vejo
E tão nada tu me vês
Abraçado com tais linhas
Sigo a vida na tua ausência
Se morrer de antecedência
Nem saberás que são minhas
Envio-te em forma de carta
Posto dizer não consigo
Queria ser mais que amigo
Amante de cama farta
Não me contentar em ver-te
No acaso de dias escassos
E na sombra dos teus passos
Espreitar chance do flerte
Se é tão nada que me vês
Sabe o quanto eu te vejo
Nesse poema benfazejo
Que escrevo sem ter porquês
Horas de navalha
O homem larga a navalha
De espuma e sangue e barba
Pedaços da própria sorte
Vertem a primeira hora
Vago de incertezas tantas
Enche o frágil pensamento
De ilusão e esperanças
Reveste a pele por dentro
Qual é mais intolerante?
Rua, metrô, livro-ponto
Ou a promessa de infante
que vira deveras sonho?
Nas mesas dos escritórios
Fantasmas cegos e mudos
Batem carimbos inúteis
Desatam tolos imbróglios
Chegado o fim da jornada
Despe o uniforme puído
Veste de volta o menino
E enfim descobre que é nada
O homem pega a navalha
Abre a pele e o pulso rasga
Pedaços da própria sorte
Vertem à última hora
terça-feira, 17 de agosto de 2010
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Três poemas (Charles Kiefer)
Eu canto
Eu canto o que vi, um dia, fenecer
nesse desfazer-se implacável
que é a vida, o amor, a fome
de outro ser, que se esboroa,
esperança que se esvai em agonia
Eu canto o que vi, e o que passou,
e o que senti, vivi, e o que amei,
que sobra de tudo só o canto triste
de um passado já morto, e que morre
a todo o instante, a desfazer atroz
e inclementemente a vida e o ser.
Amor
Sobre o amor não sei falar.
Ou sei, mas é de outro amor,
mais vasto que este, agregado
à pele, aos ossos, ao corpo.
Sei falar do amor que é negra luz
e fria luz, o centro mesmo do ser
e que irradia a outra luz, a branca
luz, a luz da lógica razão,
e que anuncia a possibilidade
de ultrapassar-se o esperma,
o gozo, o espanto, a noite fria.
E é música sem som, palavra
oca, mas que toca a foca,
a cotovia, o céu da boca e, lá no
alto, o céu da estrela-guia.
Eu o pressinto no olhar de um cão,
num peixe morto sobre a mesa,
num corpo exausto no leito,
ausente e absinto, presente
e vinho, azeite e pão.
Deste amor eu sei falar.
Não me fales de amor
Não me fales de amor, essa ilusão
de tolos incientes que desconhecem
o poder da carne e que à luxúria
creditar precisam guirlandas de flores
e véus esbranquiçados. Não sabem,
estes tolos, que o amor acaba como
o lenho lambido pela chama, e não há
maneira de sustentá-lo aceso?
A carne não, a carne é bem mais forte
e resiste intacta por diversos anos.
Depois, adiante, a carne, sim, fenece,
mas antes, antes há de ser prece
no altar do gozo, e goza o amante
o puro instante, enquanto não chega
a hora vil do abate.
Não me fales de amor, essa tolice
de adolescente, que a confundir
desejo e ágape, se perde em círculos
de cão a mordiscar a própria cauda,
a confundir no espelho de outra
face a própria face imberbe.
O amor não desce à alma, só flutua
na terrível derrisão e movimento
incessante do rio do ser em eterno
movimento; o amor não tece futuro
nem esperança e não sabe construir
pontes entre dois seres diferentes;
o amor não basta nem a si mesmo
e não padece às conjuras dos velhos
feiticeiros; o amor verdadeiro é só
o do erasta, que ama no amante
tão somente o corpo desvalido.
Não me fales de amor, esse balido.
Eu canto o que vi, um dia, fenecer
nesse desfazer-se implacável
que é a vida, o amor, a fome
de outro ser, que se esboroa,
esperança que se esvai em agonia
Eu canto o que vi, e o que passou,
e o que senti, vivi, e o que amei,
que sobra de tudo só o canto triste
de um passado já morto, e que morre
a todo o instante, a desfazer atroz
e inclementemente a vida e o ser.
Amor
Sobre o amor não sei falar.
Ou sei, mas é de outro amor,
mais vasto que este, agregado
à pele, aos ossos, ao corpo.
Sei falar do amor que é negra luz
e fria luz, o centro mesmo do ser
e que irradia a outra luz, a branca
luz, a luz da lógica razão,
e que anuncia a possibilidade
de ultrapassar-se o esperma,
o gozo, o espanto, a noite fria.
E é música sem som, palavra
oca, mas que toca a foca,
a cotovia, o céu da boca e, lá no
alto, o céu da estrela-guia.
Eu o pressinto no olhar de um cão,
num peixe morto sobre a mesa,
num corpo exausto no leito,
ausente e absinto, presente
e vinho, azeite e pão.
Deste amor eu sei falar.
Não me fales de amor
Não me fales de amor, essa ilusão
de tolos incientes que desconhecem
o poder da carne e que à luxúria
creditar precisam guirlandas de flores
e véus esbranquiçados. Não sabem,
estes tolos, que o amor acaba como
o lenho lambido pela chama, e não há
maneira de sustentá-lo aceso?
A carne não, a carne é bem mais forte
e resiste intacta por diversos anos.
Depois, adiante, a carne, sim, fenece,
mas antes, antes há de ser prece
no altar do gozo, e goza o amante
o puro instante, enquanto não chega
a hora vil do abate.
Não me fales de amor, essa tolice
de adolescente, que a confundir
desejo e ágape, se perde em círculos
de cão a mordiscar a própria cauda,
a confundir no espelho de outra
face a própria face imberbe.
O amor não desce à alma, só flutua
na terrível derrisão e movimento
incessante do rio do ser em eterno
movimento; o amor não tece futuro
nem esperança e não sabe construir
pontes entre dois seres diferentes;
o amor não basta nem a si mesmo
e não padece às conjuras dos velhos
feiticeiros; o amor verdadeiro é só
o do erasta, que ama no amante
tão somente o corpo desvalido.
Não me fales de amor, esse balido.
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Três poemas (Naiana Ramos Alberti)
1.
o longe
é sempre paisagem
2.
Há tanto o que combinar
Há tanto o que combinar:
a música na poesia do dia
a palavra no verso da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há beijos
que soltos se enlaçam
uns aos outros...
Há pernas
que tolas se amarram
umas nas outras...
Há tanto o que combinar:
as ondas na orla do dia
a palavra na prosa da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há olhos
que lassos se entregam
uns aos outros...
Há mãos
que vazias se enchem
umas das outras...
Há tanto o que combinar:
a sede na fome do dia
a palavra no descanso da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há pensamentos
que ditos se unem
uns aos outros...
Há roupas
que rotas se tocam
umas às outras...
Há tanto o que combinar:
os caminhos no fim do dia
a palavra no cheiro da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há tanto o que combinar...
3.
Passo
Passou o dia por mim
a história já feita
com seus segundos
em meus ponteiros
O dia foi lento
arrastado
vagaroso
(no meu pensar)
Passa a noite em mim
a história por contar
com seus segredos
em meus ouvidos
A noite é vasta
imensa
clara
(no meu pesar)
o longe
é sempre paisagem
2.
Há tanto o que combinar
Há tanto o que combinar:
a música na poesia do dia
a palavra no verso da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há beijos
que soltos se enlaçam
uns aos outros...
Há pernas
que tolas se amarram
umas nas outras...
Há tanto o que combinar:
as ondas na orla do dia
a palavra na prosa da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há olhos
que lassos se entregam
uns aos outros...
Há mãos
que vazias se enchem
umas das outras...
Há tanto o que combinar:
a sede na fome do dia
a palavra no descanso da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há pensamentos
que ditos se unem
uns aos outros...
Há roupas
que rotas se tocam
umas às outras...
Há tanto o que combinar:
os caminhos no fim do dia
a palavra no cheiro da vida
e o desejo
em todo momento
de existir inteiro
Há tanto o que combinar...
3.
Passo
Passou o dia por mim
a história já feita
com seus segundos
em meus ponteiros
O dia foi lento
arrastado
vagaroso
(no meu pensar)
Passa a noite em mim
a história por contar
com seus segredos
em meus ouvidos
A noite é vasta
imensa
clara
(no meu pesar)
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